Imagem capa - COMO NASCE UM OLHAR por Mauro Cardoso Fotografia de Casamentos e Eventos - Curitiba
Depoimento

COMO NASCE UM OLHAR

Vasculhando gavetas, álbuns e porta-retratos, concluí que há poucos registros fotográficos da minha infância. Ficaram apenas na memória aqueles tempos verdes que incubavam extremada timidez ruidosa, cuja invocação trazem aqui certa dose de atmosfera nostálgica. Foram décadas de sentimentos difusos de um tempo feliz. No entanto, sobrevém, amiúde, as incertezas da doçura da criança de outrora. É como a luz que sempre entra pela lente sem pedir licença.

As lembranças da minha infância são palatáveis, pois ainda têm o gosto do pudim de pão da minha avó, feito especialmente para mim, seu neto mais velho, molecote miúdo e de timidez sem controle. Guardo com clareza de memória aquela adorável e doce velhinha, sentada ao lado da janela da sala de estar da velha casa de madeira rústica. Quando se entrava pelo portão da frente, a casa se escondia atrás de duas árvores.

Quase todas as manhãs, dava para ver os raios de sol, que rasgavam a janela de madeira e caiam delicadamente sobre seus dedinhos miúdos e ágeis. Achava engraçada a rapidez com que a agulha de crochê pescava a linha do novelo de lã enrolada no dedinho murcho da minha avó. Curioso como requer a idade, até pedira que me ensinasse a fazer crochê, mas logo desisti, pois não tinha a paciência necessária ao trabalho manual meticuloso. Outras "artes" me chamavam para fora da casa.

Logo de manhãzinha, quando os primeiros raios de sol refletiam nas gotas do orvalho, vinha um cheiro de mato devido ao calor do verão. Logo o sol se erguia e se punha a pino para revelar diferentes matizes de verde e amarelo, luzes especulares, dimensões áureas contrastadas entre sombras duras.

Adorava caminhar a pés descalços, sentindo o frescor das folhas secas amareladas. Se bem me lembro, havia uma trilha de cerca de 50 metros ladeada de vegetação rasteira e algumas árvores. Não era um percurso suficiente para que eu me perdesse, mas meus velhinhos queridos se preocupavam comigo. Não demorava muito (pelo menos para mim), ouvia minha avó me chamar. Sabia que não me era permitido andar por ali. Tentava mesmo assim enganar o tempo diminuindo o tamanho dos passos, mas sempre me descobrira ali, no mesmo lugar. A teimosia da infância me fazia demorar o máximo que podia. Sim, eu queria que o tempo demorasse. Isso irritava-os um pouco, e eu sabia disso.

Minha infância foi ladeada de muito amor e carinho sempre. Ainda não me escapou da memória aqueles pequenos dedinhos calejados e riscados pelo tempo e o pudim de pão depois do jantar. Imagens inesquecíveis. Era doce a vontade de que o momento congelasse ali naquele tempo de férias. A utopia de criança deixava sempre gosto amargo de partida.


Depois de casado, ganhei duas lindas filhas. Trabalhei anos nas ciências exatas, atuando quase que 100% com raciocínio lógico. Régua, tecnígrafo e calculadora científica eram meus instrumentos de trabalho. Alcancei muita coisa com a profissão, mas uma inquietude tirava-me a paz interior. Sentia-me como uma árvore enraizada, que com seus galhos quer tocar a nuvem. Felizmente tudo mudou quando dois raios de sol invadiram o meu olhar. E foi assim que eu me apaixonei definitivamente pela fotografia:

https://youtu.be/HTzNZxtSILw

Um dia, ao final da tarde, cheguei com uma máquina fotográfica em casa. Era uma SLR, marca ZENIT, objetiva 50 mm, encaixe tipo rosca. Comprei meu primeiro filme Fuji (ASA 100 – 35mm) de 36 poses. Nessa época, muito antes da era digital, estudava fotografia por material impresso, revistas sobre fotografia que comprava em banca de jornal. E praticava muito em casa com as minhas modelos. Como não contava com a imagem pronta no LCD da máquina, praticidade que temos atualmente com as DSLRs, queimei muito filme.



Errei muito. Mas aprendi muito também. Minhas filhas já não me aguentavam mais persegui-las pelos cômodos da casa com aquela máquina estranha, que disparava uma luz forte. Fugiam aos prantos. Escondiam-se dos cliques ficando debaixo da mesa. Mas tirei delas muito sorriso espontâneo, muita doçura, muito amor. Tornei-me um autodidata na fotografia graças às minhas modelos lindas.

Elas foram e sempre serão meus motivos, minhas modelos, minha criatividade, minha inspiração, minhas melhores fotos impressas.


Já na era digital, a robusta ZENIT, que tanto me ensinara, tornou-se agora peça de decoração na prateleira do escritório. Continuo lendo, fazendo cursos, estudando e clicando pessoas. Ocupo diariamente meu pensamento com a linguagem fotográfica. A paixão pela fotografia acaba me revelando imagens construídas a partir de estereótipos culturais, que se supõem reais cada vez que aponto a lente para alguém.  A realidade é fugaz e pode ser manipulada. Comportamentos podem ser mudados nos segundos que antecedem um "clique". Foi assim que a fotografia na minha vida se tornou um projeto de vida, pois tenho a oportunidade de entregar um produto visual que durará a vida toda, capaz de emocionar gerções.